A retórica da proteção ao consumidor se tornou onipresente no Brasil. Qualquer tentativa de questionar regras, limites ou regulações é rapidamente enquadrada como “ataque aos direitos do cidadão”. No entanto, o uso político dessa legislação — originalmente pensada para equilibrar assimetrias entre fornecedor e cliente — revela uma distorção perigosa: a lei do consumidor passou a funcionar, muitas vezes, como arma contra o próprio mercado.
Ela encarece serviços, inviabiliza pequenos empreendedores, sufoca a inovação e transfere poder para a burocracia e para grandes grupos que aprenderam a usar o Estado como escudo contra a concorrência.
Antes de aprofundar esse debate, vale a pena revisitar duas reflexões já publicadas aqui no blog. A primeira trata da forma como o Estado utiliza a regulação para proteger setores ineficientes da concorrência real — veja o artigo O Fetiche da Regulação. A segunda mostra como a burocracia virou um obstáculo à inovação, especialmente para pequenos empreendedores — entenda mais em Empreender no Brasil: onde a burocracia é o maior concorrente.
Neste artigo, vamos mostrar como o discurso da proteção se tornou um mecanismo de controle, como a regulação mal desenhada prejudica o desenvolvimento e por que a defesa do consumidor virou justificativa para manter privilégios e estruturas estatais ineficientes.
A retórica da proteção e a prática da coerção
Não é difícil encontrar exemplos. Uma padaria de bairro que quer vender quentinhas precisa cumprir exigências sanitárias e regulatórias que consomem tempo e dinheiro. Um mecânico informal, mesmo com boa reputação, é multado por não ter “placa visível” de atendimento ao consumidor. Uma empresa de tecnologia não pode lançar um novo serviço antes de atender todas as normas do Procon local, ainda que tenha aprovação voluntária dos seus clientes.
Esses não são casos isolados. São sintomas de um sistema que passou a usar a proteção ao consumidor como justificativa para manter um ambiente econômico fechado, inseguro e hostil à liberdade de escolha.
A armadilha da regulação bem-intencionada
Segundo a coluna Direito e Economia da revista Veja, o excesso de leis e regulações, mesmo quando bem-intencionadas, acaba por criar um ambiente jurídico e institucional inóspito à inovação. Empreendedores passam a gastar mais com advogados do que com desenvolvimento. Serviços inovadores deixam de ser lançados por medo de processos. E o consumidor perde o que mais deveria ter: alternativas.
“Ao travar o surgimento de modelos de negócio inovadores, a legislação de proteção pode acabar impedindo que o consumidor tenha acesso a melhores produtos e serviços, a preços mais competitivos.”
— Veja – Protecionismo disfarçado e a armadilha da inovação
O artigo alerta: não é o mercado que está se tornando hostil ao consumidor. É a lei que, ao tentar protegê-lo de tudo, impede que ele escolha por si mesmo.
O que diz o IPEA: regulação mal desenhada afeta o crescimento
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou um estudo extenso sobre os efeitos da regulação no desenvolvimento. O capítulo 6 do livro Instituições e Desenvolvimento no Brasil analisa como a governança regulatória no país tem criado barreiras à produtividade, ao investimento e à livre iniciativa.
Alguns pontos-chave do estudo:
- Custo excessivo: regulações mal concebidas impõem custos desnecessários às empresas, dificultando a operação e a expansão.
- Redução da concorrência: excesso de exigências legais restringe a entrada de novos agentes no mercado, favorecendo monopólios e cartéis.
- Impacto negativo no crescimento: regulações mal desenhadas reduzem o investimento e inibem a inovação, travando a economia.
- Falta de análise de impacto regulatório: muitas leis são feitas sem medir seus efeitos práticos, o que gera distorções institucionais permanentes.
O próprio relatório da OCDE, citado no estudo, é enfático:
“Se mal desenhada, a regulação cria um custo aos empreendedores e cidadãos e age como um freio à competição, ao crescimento e ao investimento.”
Fonte: IPEA – Capítulo 6: Governança regulatória e desenvolvimento. 2020.
Regulação como barreira de entrada
Por trás do discurso da proteção, está uma realidade que poucos têm coragem de admitir: a regulação virou instrumento para manter os grandes no topo e os pequenos fora do jogo.
Se uma grande rede de supermercados pode contratar um batalhão jurídico e cumprir cada detalhe da legislação do consumidor, um comerciante autônomo ou um pequeno negócio não pode. O custo de operar dentro da lei torna-se, ele próprio, um fator de exclusão econômica.
Essa é a ironia: em nome da igualdade, o sistema legal cria desigualdade.
Quando o Procon define o modelo de negócios
O modelo brasileiro de regulação consumerista transforma entes como o Procon em verdadeiros juízes da estrutura empresarial. Empresas precisam antecipar como serão interpretadas pelos órgãos de defesa do consumidor antes de lançar um produto. Isso gera censura prévia, incerteza jurídica e retração do empreendedorismo.
Em vez de proteger o consumidor real — aquele que pode pesquisar, comparar, avaliar e rejeitar produtos —, o sistema pressupõe que o cidadão é incapaz, passivo e dependente da tutela estatal.
É a infantilização do consumidor e a demonização da liberdade de escolha.
O consumidor que não pode escolher
Proteção sem liberdade não é proteção — é controle. Quando o Estado limita quais serviços estão autorizados, define o que é “abusivo” com base em critérios políticos e impõe padrões únicos para setores diversos, ele está decidindo por você.
O resultado é um paradoxo trágico: em nome do consumidor, destrói-se o próprio mercado que lhe oferece opções.
O discurso da proteção como instrumento de dominação
Ao controlar as regras do jogo e se posicionar como guardião do consumidor, o Estado cria uma relação de dependência. E uma vez que essa relação está consolidada, qualquer questionamento vira “ataque aos direitos”.
Não é por acaso que muitos órgãos de defesa do consumidor resistem à digitalização de contratos, à descentralização de pagamentos, à inovação financeira e à livre negociação entre partes. Quanto mais o cidadão age por conta própria, menos o Estado é necessário — e isso é inaceitável para quem lucra com a dependência.
O que fazer? O caminho da liberdade com responsabilidade
Isso não significa defender um mercado selvagem, sem qualquer regulação. Mas sim defender uma regulação enxuta, transparente, com análise prévia de impacto e foco na liberdade de escolha do cidadão.
- Mais liberdade para inovar
- Menos entraves burocráticos
- Revisão sistemática de regulações inúteis
- Proteção à concorrência, não à estrutura de poder
Conclusão: proteger o consumidor ou proteger o privilégio?
A defesa do consumidor é essencial. Mas quando ela é usada para construir um aparato regulatório que favorece grupos já estabelecidos, pune a inovação e infantiliza o cidadão, ela deixa de ser proteção e se torna uma farsa.
Não há defesa do consumidor sem liberdade de escolha. E não há liberdade sem um mercado aberto, dinâmico e competitivo.
Chegou a hora de perguntar: estamos protegendo o consumidor — ou protegendo os donos do sistema?
Leia também: o artigo Subsídios bilionários, inflação popular: a conta (in)visível da “ajuda estatal, que mostra como a retórica da proteção serve para concentrar poder, e o texto A farsa do real: como destruímos o valor da nossa própria moeda, que denuncia como o Estado manipula a economia e a moeda sob pretexto de estabilidade.
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🔗 Referências
- Veja – Protecionismo disfarçado e a armadilha da inovação
- IPEA – Instituições e Desenvolvimento no Brasil: Diagnósticos e uma agenda de pesquisas para políticas públicas. Capítulo 6: Governança regulatória e desenvolvimento. 2020.