A lei deveria ser universal, igual para todos, cega diante da condição social e firme contra os abusos do poder. No entanto, a realidade brasileira revela um Estado cuja legalidade é seletiva: reprime os pequenos, tolera os grandes; persegue os fracos, protege os fortes.
Camelôs são tratados como criminosos por venderem produtos no meio da rua. Pequenos negócios são sufocados por multas, licenças, normas e taxas. Enquanto isso, estatais ineficientes e empresas com acesso privilegiado ao poder político operam no vermelho, acumulam dívidas e seguem impunes — distribuindo dividendos, ganhando incentivos e sendo tratadas como intocáveis.
Antes de aprofundar essa análise, vale a pena retomar dois artigos anteriores do blog. O primeiro mostra como o discurso de proteção pode ser manipulado para sufocar a concorrência e blindar setores ineficientes — leia Lei do consumidor ou arma contra o mercado?. O segundo discute como a própria moeda nacional foi degradada pelo uso político da economia — confira A farsa do real: como destruímos o valor da nossa própria moeda.
Neste artigo, examinamos como o Estado brasileiro utiliza o aparato legal para sustentar uma economia de castas, onde a “justiça” serve como ferramenta de controle social, e não como garantia de liberdade ou equidade.
Os camelôs e a força da repressão
No Brasil urbano, ser pequeno é ser vulnerável. Em uma ação da Prefeitura do Rio de Janeiro em 2017, dezenas de camelôs foram abordados violentamente por guardas municipais, resultando em apreensão de centenas de produtos. A operação ocorreu em plena luz do dia, sob a justificativa de combater o comércio ilegal.
“A operação foi realizada em diversos pontos da cidade, resultando na apreensão de 223 produtos. Entre os itens recolhidos, estavam roupas, acessórios e brinquedos vendidos sem autorização.” — Metro World News Nenhuma acusação de contrabando, de furto ou de ameaça à ordem pública — apenas a ausência de uma licença.
Fonte: Metro World News – Ação contra camelôs no Rio apreende 223 produtos
Esse é o retrato de um Estado que escolhe punir a informalidade, mas não corrige a burocracia que a gera. Em vez de reconhecer o ambulante como alguém tentando sobreviver, ele é tratado como transgressor.
A outra face da legalidade: o privilégio dos grandes
Enquanto camelôs têm suas mercadorias recolhidas e seus rostos expostos nas redes sociais por “violarem a ordem urbana”, estatais como a Petrobras seguem operando com perdas bilionárias — e ainda assim, distribuem dividendos para seus acionistas.
Em 2020, no auge da crise fiscal e em meio a um prejuízo de mais de R$ 50 bilhões no primeiro semestre, a Petrobras anunciou a distribuição de dividendos.
Fonte: Valor Econômico – Petrobras paga dividendos mesmo com prejuízo
O contraste é evidente: o pequeno é punido por existir fora das normas, enquanto o grande é premiado por falhar dentro delas. Quando o Estado participa diretamente da economia, ele passa a proteger seus próprios instrumentos — mesmo quando estes operam de forma ineficiente, insustentável ou imoral.
A economia dos amigos
Não se trata apenas de empresas estatais. Grandes grupos empresariais, desde que bem conectados politicamente, também desfrutam de perdões fiscais, linhas de crédito generosas, proteção contra concorrência externa e blindagem judicial.
A legalidade, nesses casos, torna-se instrumento de defesa dos que já estão no topo. Empresas de menor porte, sem lobby, sem contatos e sem margens para navegar o sistema, vivem sob constante ameaça de punição, falência e exclusão.
É o oposto do livre mercado. É um sistema de castas regulatórias, onde o acesso à “legalidade” é uma moeda negociável — e não um direito garantido.
Quando o Estado é sócio de seus próprios erros
A contradição é ainda mais profunda quando se observa que o Estado, por meio das estatais, também atua como empresário — mas sem a disciplina de mercado. Quando uma empresa estatal dá prejuízo, ela não fecha. Quando é ineficiente, não é substituída. Quando explora o consumidor, não perde clientes: ela aumenta tarifas, redistribui perdas e se escora no Tesouro.
A Petrobras é apenas um exemplo emblemático. Mesmo operando com prejuízos bilionários por anos, sua manutenção é tratada como “patrimônio nacional”, e qualquer tentativa de privatização é demonizada.
Enquanto isso, o camelô da esquina é impedido de vender água no semáforo sem um alvará com quatro vias, taxa da vigilância sanitária e autorização da subprefeitura.
A verdadeira função da lei em uma sociedade livre
A lei, em uma sociedade livre, deve proteger contratos voluntários, garantir a integridade física e patrimonial, e limitar o uso da força. Ela não deve ser usada para regular quem pode prosperar, quem pode existir, ou quem tem permissão para servir.
Quando a lei passa a ser instrumento de privilégio, ela deixa de ser lei — e se torna poder. E o poder, como sabemos, tende a proteger a si mesmo.
A informalidade como reação legítima
A alta informalidade no Brasil não é um problema moral. É um reflexo da repressão regulatória e da rigidez legal que só serve aos grandes. Vendedores ambulantes, pequenos comerciantes, prestadores de serviço e até produtores artesanais estão fora da legalidade porque a legalidade foi sequestrada pela elite burocrática.
A informalidade é, muitas vezes, o único espaço onde ainda há liberdade. Onde o cidadão pode oferecer algo, negociar, empreender — sem pedir permissão ao Leviatã.
Leia também: o artigo Empreender no Brasil: onde a burocracia é o maior concorrente, que mostra como o sistema regulatório sufoca a livre iniciativa mesmo de quem tenta atuar dentro da legalidade.
Dois pesos, duas medidas: a estrutura da hipocrisia
Essa seletividade jurídica tem uma função política: manter o discurso da ordem para os pobres e o da estabilidade para os ricos. O mesmo Estado que reprime camelôs por venderem fones de ouvido piratas não se constrange em subsidiar empresas bilionárias com isenções, incentivos e “recomposições tarifárias”.
E sempre com a mesma desculpa: “interesse público”.
Mas o que é o interesse público, senão o pretexto jurídico de quem já controla o sistema para continuar controlando?
Conclusão: ou a lei é para todos, ou é só mais uma arma
A desigualdade no Brasil não se sustenta apenas na economia — ela é reforçada pela legalidade seletiva. A repressão ao informal é uma forma de controle social. O perdão ao grande é uma forma de blindagem institucional.
Se a lei não vale igualmente para camelôs e estatais, ela não é justa — é apenas mais um instrumento do poder contra os vulneráveis.
Leia também: o artigo Subsídios bilionários, inflação popular: a conta (in)visível da “ajuda estatal”, que expõe como o Estado transfere riqueza dos pobres para os grupos protegidos; e o texto Lei do consumidor ou arma contra o mercado?, que mostra como a retórica da proteção é usada para sufocar a livre concorrência.
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🔗 Referências
- Metro World News – Ação contra camelôs no Rio apreende 223 produtos
- Valor Econômico – Petrobras paga dividendos mesmo com prejuízo