No imaginário jurídico brasileiro, o Supremo Tribunal Federal deveria ser o escudo das liberdades fundamentais. Mas nos últimos anos, essa imagem se esfarelou sob o peso de decisões cada vez mais centralizadoras e arbitrárias. O STF, outrora fiador da Constituição, tornou-se o validador de um regime informacional onde criticar virou crime e duvidar é tratado como sabotagem democrática.
A história não se faz apenas com tanques — às vezes, basta uma toga e o silêncio forçado. Em nome da “defesa da democracia”, ministros do STF vêm construindo uma jurisprudência paralela que transforma liberdade de expressão em ameaça institucional. O problema não é pontual. É estrutural. E já está em curso.
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De guardião da Constituição a fiador do TSE
O artigo 102 da Constituição é claro: compete ao STF a guarda da Constituição. Não a interpretação criativa conforme humores do tempo, mas a proteção da letra e do espírito do texto constitucional. No entanto, em nome da estabilidade institucional, a Corte passou a referendar decisões que violam frontalmente o direito à livre manifestação do pensamento — sobretudo quando partem do TSE.
O Supremo hoje endossa censura prévia, remoção de conteúdo, bloqueio de perfis, intimações sem devido processo legal e até perseguição política sob o pretexto de combate à desinformação. Não importa se o conteúdo é verdadeiro. Basta que contrarie o “consenso democrático” — um conceito vazio, mas útil ao poder.
O caso paradigmático do inquérito das fake news
Nenhuma análise sobre o papel do STF na censura contemporânea seria completa sem citar o famigerado Inquérito 4.781, instaurado de ofício por Dias Toffoli e relatado por Alexandre de Moraes. Um processo sem vítima, sem promotor, e com réus escolhidos a dedo. Um escárnio jurídico que virou política de Estado.
A partir dele, abriu-se a porta para a repressão institucionalizada. Jornalistas, humoristas, analistas políticos e até parlamentares passaram a ser investigados e punidos por opiniões consideradas “ameaças” — não à ordem, mas ao conforto institucional de quem está no topo. A censura, que antes era combatida como herança autoritária, passou a ser normalizada sob o disfarce de proteção institucional. Vozes dissidentes foram transformadas em alvos de inquéritos, conduzidos sem o devido processo legal, com medidas desproporcionais e punitivas. Em um país onde a sátira vira ameaça, a denúncia vira fake news e o protesto vira atentado, não há espaço para o debate honesto. O inquérito das fake news tornou-se um laboratório jurídico de exceção, onde se testa o quanto o Estado pode silenciar antes que a sociedade reaja — ou se conforme. O que começou como um caso específico, hoje é um modelo de repressão replicado e legitimado pela mais alta Corte do país.
A retórica do discurso antidemocrático
O novo mantra do STF é que “liberdade de expressão não é liberdade de agressão”. Uma frase bonita que serve como senha para criminalizar qualquer voz dissonante. A Corte não distingue mais incitação real de crítica severa; ironia de ameaça; denúncia de subversão.
Com base nessa doutrina, o Supremo chancela ações como:
- remoção sumária de conteúdos nas redes;
- ordens de prisão contra comunicadores;
- mandados de busca em residências de críticos do Judiciário;
- bloqueio de contas bancárias e redes sociais;
- cooptação de agências de checagem como fonte probatória.
A liberdade, que deveria ser um princípio, virou concessão temporária — revogável a qualquer momento por decisão monocrática.
O contraste com democracias liberais
Países como os EUA, Alemanha ou Reino Unido possuem sistemas de proteção da liberdade de expressão muito mais robustos — inclusive para discursos duros contra instituições. Lá, a crítica ao Supremo seria parte legítima da arena pública. No Brasil, tornou-se crime de lesa-pátria.
Em vez de seguir o padrão liberal, o STF brasileiro optou por uma simbiose com o Executivo e o TSE, formando uma tríade que concentra poder, regula o debate e pune a divergência. É o oposto de uma democracia funcional. É um simulacro.
O que dizia Rothbard sobre os tribunais em regimes autoritários
Considerando o espírito das ideias de Murray Rothbard, em seu clássico “O que o governo fez com o nosso dinheiro?”, pode-se afirmar: as instituições que deveriam conter o governo acabam sendo por ele cooptadas, transformadas em instrumentos de coerção e justificativa retroativa de abusos.
É exatamente esse o papel atual do STF. Um tribunal que, em vez de proteger a Constituição contra o Estado, protege o Estado contra a Constituição.
Conclusão
Não há democracia sem liberdade de expressão. E não há liberdade de expressão quando o tribunal máximo da nação se torna fiador da censura. O STF abandonou o papel de escudo da Constituição para vestir o manto da autoridade moral absoluta. O resultado? Um país onde questionar virou crime, e pensar alto pode custar caro.
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